A janela estava aberta
e o sol já batia forte, fazendo com que uma intensa claridade invadisse o
quarto. Mas meu despertar não foi devido a luz. Foi devido a uma sensação, que
a princípio me pareceu estranha, mas depois comecei a compreender do que se
tratava.
Um sentimento que tenho
certeza que mexeu com todos os meus sentidos. É difícil dizer qual deles foi o
primeiro a ser alertado. Chuto que foi a visão. A mesma claridade que não me
fez despertar, ao mesmo tempo fazia parte de tudo aquilo. Obviamente era um
sentimento acionado pela minha memória e aquela luz ali no quarto, naquele
exato momento, remetia a uma questão especifica.
Era a luz de
determinados despertares, os mesmos que sempre aconteciam do lado de alguém, do
lado de uma mulher. Que surgiam sempre depois de uma noite de bebedeira e que o
próximo despertar só surgia quando a companhia também era outra. Aquela luz
batia sobre a pele dos dois corpos, em mim causava a sensação de ser um calor
matinal, extremamente equilibrado, nem quente demais quando estava com as
cobertas, nem frio de mais quando estava sem elas. Um mimo solar, apesar de
considerar engraçada tal expressão, por muitas vezes foi o que pensei.
Mas como já disse,
todos os sentidos eram provocados quando acontecia esse sentimento. Depois fico
pensando no olfato. Que cheiro era aquele? Não era o cheiro da mulher que
estava ao meu lado, muito menos o meu. Os nossos cheiros, o meu e o dela, só
faziam parte da composição, só faziam parte da totalidade. Ouso dizer que era o
cheiro do próprio sentimento e que esse cheiro tinha relação com tudo mais, com
todos os outros sentidos.
Parecia o cheiro do
alívio, mesclado com glória e perdão. Sim, eram esses exatamente os aromas. Com
isso já podemos pular para o paladar, esses mesmos aromas eram também os
sabores: alívio misturado com glória e perdão. Juro que por alguns minutos
minha língua sentia o gosto deles.
A música. A música era
produzida por esses pequenos passarinhos com piado fino e constante. Esse era o
som em primeiro plano. Num plano secundário estava o som dos automóveis. Passavam
esporadicamente e raramente algum deles se atrevia a fazer um barulho mais
alto. Passos de pessoas eram uma exceção naquela harmonia.
Por fim, voltando ao
tato, para além do gostoso mimo do sol, nunca os lençóis ficavam tão agradáveis
como durante aquele sentimento, a pele delas sempre parecia mais convidativa,
mas não por mero desejo carnal, sempre eram convites de afeto.
Tudo isso em poucos
minutos. Porém estava sozinho. Por que justamente hoje a recordação de tal
sentimento? Talvez devido a bebedeira de ontem. Mas nem foi uma grande bebedeira
assim, a máquina está cada vez mais enferrujando, incluindo o tanque. Vai
saber, o que importa é que lembrar disso, fez com que lembrasse de todas, fez
com que olhasse no espelho, a cara nem é das piores, mas não posso dizer o
mesmo da vida.
Não que durante esses
despertares estive num momento de fama e glória, mas pensando agora, ao menos
me sentia na ativa. Hoje é como se tudo estivesse organizado e aqui estou eu
todo organizadinho num mar de bosta. Talvez o caos seja essencial para a
criação, acho que alguém já falou algo assim, o pior é que não tenho a mínima ideia,
nem que eu quisesse, de como retomar esse caos na minha vida.
Primeiro, que não
somente elas, mas todo o ciclo de relação delas, vira a cara para mim. E são
eles justamente a rapaziada do rock n roll, da agitação, da vida caótica.
Segundo que eu também já não tenho mais o mínimo de paciência para lidar com esse
tipo de pessoa, aliás, acho que já não tenho paciência para lidar com tipo
nenhum. Olha eu já parecendo o velho beberrão da máquina de escrever de novo.
Levantei da cama, vesti
a cueca e fui no banheiro fazer o de sempre. Liguei o chuveiro e enfiando a
cabeça lá embaixo durante um bom tempo, tentei esquecer a merda desse
sentimento e tudo que ele me trouxe. É sempre assim, alguém acordando, indo pro
banheiro e aí tudo começa, no fim tudo termina na sala da casa. A máquina
realmente está enferrujando.
Justamente por isso
pensei que hoje não beberia cerveja, doce ilusão. Foi sair do banho, já fui
direto para a geladeira e apanhei uma long neck. De repente, mais um flash:
minha mãe gritando:
- Miguel, sai da frente
da geladeira, você acabou de sair do banho quente, vai entortar.
Eu sempre saía imitado uma
cara monstruosa pra ela, como se realmente tivesse ficado o rosto deformado,
num primeiro momento a velha sorria, num segundo ficava puta da vida e me dava
umas porradas de leve.
É realmente difícil
lidar com os tempos verbais hoje em dia. Mas o que importa, é que terminado
minha cerveja, decidi dar um boa caminhada sem rumo pela cidade. Não tinha
nenhum bico pra fazer mesmo e também não estava afim de procurar nenhum, a
grana ainda ia durar por algum tempo. Coloquei minha roupa e pé na estrada.
Descendo uma rua
qualquer, vi que num jardim de casa, duas menininhas descalças brincavam
correndo uma atrás da outra, provavelmente pique e pega. Nova recordação, pés
descalços na grama. A quanto tempo não fazia isso? Essa recordação também tinha
cheiro, tato, música, obviamente visão, só não sei se paladar, acho que foram
poucas vezes que meti um tufo de grama na boca.
Aquilo ali entrava como
espinhos suaves em nossos pés, se é que isso é possível, era como se em cima
houvesse uma camada macia e em baixo algo bem encrespado e duro. O cheiro de
grama todo mundo já conhece, mas quero dizer a vocês que nada como o cheiro de
grama cortada. Sempre sonhei em fazer um perfume com esse aroma, parecido com
aquele menino do livro.
Pisar na grama, ouvir
aquele chiado dela sendo esmagada aos poucos e depois os sons dela se
reconstituindo das suas pegadas. Quando retomei a consciência, já estava
descalço simplesmente caminhando em círculos na frente das meninas. Elas
pareciam que iam começar a chorar e provavelmente os berros seriam fortes,
clamando por seus pais. Dei o fora dali.
Será tudo isso mera
descrição memorialista? A máquina não só está enferrujando como também caindo
aos pedaços.
Decidi então passar
numa livraria. Adoro comprar livros de bolso. É, realmente é. Ficar girando
aquelas prateleiras e de repente o danado aparece. É claro que o fator
principal é por eles serem baratos, como free lancer não dá pra ficar comprando
sempre aqueles calhamaços cheios de ilustrações. Fato é, que na livraria
encontrei uma das mulheres do sentimento, aquele do despertar, que recordei
quando acordei.
Ela estava parada no
meio da loja, segurava na mão um livrinho de bolso também. Acho que também fica
bom aqui. Vestia uma saia vermelha, dessas que parecem estar engomadas, uma
blusa justa decotada azul e uma jaqueta de pseudo couro amarelo. O resto da
descrição termino depois. Aliás, imaginem que ela também tem cabelo curto e o
resto complementem como quiserem.
A maioria das pessoas
que estavam ali na loja, olhavam espantados para ela. Logo percebi o porquê. Em
voz alta estava lendo o livrinho, não dava para identificar que livro era, mas
a questão é que não parecia estar fazendo muito sentido para os presentes ali.
- E ele mordeu
fortemente o clitóris dela. Logo toda a cama já estava ensanguentada. Ela ficou
horrorizada com aquela atitude, não entendia como que uma pessoa supostamente
tão carinhosa como ele, pudera cometer uma atitude como aquela. Parava olhava
em volta, parecia buscar o olhar de cada pessoa e depois continuava.
- Sim! Sim! Sim! Deu as
duas últimas garfadas no enorme pedaço de bolo de cenoura. Aquele pedaço poderia
ser considerado um bolo em si, mas ele sempre teve ciência de que se tratava de
um pedaço. Sabia também que era o último bolo de cenoura que comia feito por
sua mãe. Durante a primeira garfada a velha acabara de ter um infarto e caiu no
chão da cozinha na frente do rapaz. Por causa disso, ele hesitou em dar a
segunda garfada, mas sabia que aquilo era necessário e então fez.
Respirou profundamente,
lembram-se da aparência das roupas dela, as cores, o que vocês imaginaram?
Respirou profundamente e fechou o livrinho e começou a falar mais uma vez:
- Vocês podem estar
achando tudo isso muito estranho, uma leitura desconexa, e que vai do horrendo
ao ridículo. E justamente devem variar entre tais sentimentos, não sabem se
ficam horrorizados ou se dão gargalhadas por acharem tudo isso muito ridículo.
Não estão acostumados com algo que rompa com a zona de conforto de vocês. Mesmo
numa livraria, suposto lugar de intelectualidade, tudo tem que correr como
manda a regra.
Riem, mas nem se quer
notam a própria prisão. Enquanto falo, conseguem imaginar algo bem colorido,
que de fato soe como absurdo? E qual foi a última vez que um de vocês
praticaram o absurdo? Isso é arte meus queridos, a prática do absurdo. Somente
ele pode significar liberdade.
Mas compreendo vocês,
nem sempre sou assim, também tenho medo, muito medo. Afinal desde criança
tomamos pauladas, e a mordida seja do sexo ou do bolo soa pior do que as surras
oprimindo as cambalhotas.
Licença poética. Afinal
é a personagem que está falando mesmo. O que fazer com o soar ridículo? Tudo já
está ficando muito forçado, a máquina está prestes a explodir.
Abriu os olhos, por um
segundo ela desejou aplausos, mas sabia que isso não ia acontecer. Eu fui o único
que aplaudi, talvez pela consideração que ainda tinha por ela, não por toda
aquela baboseira que tinha acabado de ouvir. Minhas palmas soavam secas e
ecoavam pela loja, dessa vez era eu o centro das atenções. Percebendo aquilo,
dei o fora dali.
- Miguel! Miguel!
Espera!
Quando já estava na
rua, olhei para trás e percebi que ela corria atrás de mim e gritando. Parei e
esperei.
- Ei carinha, diz ai, o
que você achou da minha performance?
- Ah foi até legal,
pena que parece que o pessoal não gostou.
- Do jeito que que você
falou, parece que também não gostou.
- Como assim? Você não
viu que fui o único que aplaudiu?
De repente, mais uma vez
de repente, tomei consciência que ela estava ali parada na minha frente. E que
se tratava também de um corpo parado na minha frente. Logo uma explosão de flashes
começou a surgir na minha cabeça. Cenas de sexo com ela, de risadas, de brigas,
tudo isso muito banal. Mas o fato é que fiquei ao mesmo tempo excitado e
desesperado. Excitado pelas recordações do sexo, desesperado por ter todos os
sentidos ativados pelas boas recordações dos momentos de risadas e desesperado
por saber que aquilo era impossível de ser recuperado. Qual foi o dia em que
tive o sentimento de hoje de manhã com ela?
- Preciso ir.
- Como assim?
- Tchau.
Saí dali, andando com
passo apressado, ela me dizendo para esperar, mas nem dei ouvidos e continuei.
Preciso terminar isso
aqui. Já estou me alongando muito. É assim que as coisas funcionam hoje em dia,
tudo compacto e rápido para ser degustado. Filmes, literatura e o caralho a
quatro. Rápido e compacto. Mas não queria terminar em casa, com uma ótima cena
de tragédia. Provavelmente irão reclamar que tudo isso já foi escrito.
Eis que olho por uma
dessas janelas quadriculadas. Mas tudo está preto, somente por um dos
quadradinhos é possível enxergar. Várias pessoas parecem caminhar ali dentro,
como se estivessem do outro lado da rua. Não, vejo elas de cima para baixo, são
pequenas, e sei também que se trata da janela de uma loja. Afasto, tento olhar
de novo, agora aquele quadrinho também ficou escuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário