terça-feira, 26 de agosto de 2014

Acordei

A janela estava aberta e o sol já batia forte, fazendo com que uma intensa claridade invadisse o quarto. Mas meu despertar não foi devido a luz. Foi devido a uma sensação, que a princípio me pareceu estranha, mas depois comecei a compreender do que se tratava.

Um sentimento que tenho certeza que mexeu com todos os meus sentidos. É difícil dizer qual deles foi o primeiro a ser alertado. Chuto que foi a visão. A mesma claridade que não me fez despertar, ao mesmo tempo fazia parte de tudo aquilo. Obviamente era um sentimento acionado pela minha memória e aquela luz ali no quarto, naquele exato momento, remetia a uma questão especifica.
Era a luz de determinados despertares, os mesmos que sempre aconteciam do lado de alguém, do lado de uma mulher. Que surgiam sempre depois de uma noite de bebedeira e que o próximo despertar só surgia quando a companhia também era outra. Aquela luz batia sobre a pele dos dois corpos, em mim causava a sensação de ser um calor matinal, extremamente equilibrado, nem quente demais quando estava com as cobertas, nem frio de mais quando estava sem elas. Um mimo solar, apesar de considerar engraçada tal expressão, por muitas vezes foi o que pensei.
Mas como já disse, todos os sentidos eram provocados quando acontecia esse sentimento. Depois fico pensando no olfato. Que cheiro era aquele? Não era o cheiro da mulher que estava ao meu lado, muito menos o meu. Os nossos cheiros, o meu e o dela, só faziam parte da composição, só faziam parte da totalidade. Ouso dizer que era o cheiro do próprio sentimento e que esse cheiro tinha relação com tudo mais, com todos os outros sentidos.
Parecia o cheiro do alívio, mesclado com glória e perdão. Sim, eram esses exatamente os aromas. Com isso já podemos pular para o paladar, esses mesmos aromas eram também os sabores: alívio misturado com glória e perdão. Juro que por alguns minutos minha língua sentia o gosto deles.
A música. A música era produzida por esses pequenos passarinhos com piado fino e constante. Esse era o som em primeiro plano. Num plano secundário estava o som dos automóveis. Passavam esporadicamente e raramente algum deles se atrevia a fazer um barulho mais alto. Passos de pessoas eram uma exceção naquela harmonia.
Por fim, voltando ao tato, para além do gostoso mimo do sol, nunca os lençóis ficavam tão agradáveis como durante aquele sentimento, a pele delas sempre parecia mais convidativa, mas não por mero desejo carnal, sempre eram convites de afeto.
Tudo isso em poucos minutos. Porém estava sozinho. Por que justamente hoje a recordação de tal sentimento? Talvez devido a bebedeira de ontem. Mas nem foi uma grande bebedeira assim, a máquina está cada vez mais enferrujando, incluindo o tanque. Vai saber, o que importa é que lembrar disso, fez com que lembrasse de todas, fez com que olhasse no espelho, a cara nem é das piores, mas não posso dizer o mesmo da vida.
Não que durante esses despertares estive num momento de fama e glória, mas pensando agora, ao menos me sentia na ativa. Hoje é como se tudo estivesse organizado e aqui estou eu todo organizadinho num mar de bosta. Talvez o caos seja essencial para a criação, acho que alguém já falou algo assim, o pior é que não tenho a mínima ideia, nem que eu quisesse, de como retomar esse caos na minha vida.
Primeiro, que não somente elas, mas todo o ciclo de relação delas, vira a cara para mim. E são eles justamente a rapaziada do rock n roll, da agitação, da vida caótica. Segundo que eu também já não tenho mais o mínimo de paciência para lidar com esse tipo de pessoa, aliás, acho que já não tenho paciência para lidar com tipo nenhum. Olha eu já parecendo o velho beberrão da máquina de escrever de novo.

Levantei da cama, vesti a cueca e fui no banheiro fazer o de sempre. Liguei o chuveiro e enfiando a cabeça lá embaixo durante um bom tempo, tentei esquecer a merda desse sentimento e tudo que ele me trouxe. É sempre assim, alguém acordando, indo pro banheiro e aí tudo começa, no fim tudo termina na sala da casa. A máquina realmente está enferrujando.
Justamente por isso pensei que hoje não beberia cerveja, doce ilusão. Foi sair do banho, já fui direto para a geladeira e apanhei uma long neck. De repente, mais um flash: minha mãe gritando:
- Miguel, sai da frente da geladeira, você acabou de sair do banho quente, vai entortar.
Eu sempre saía imitado uma cara monstruosa pra ela, como se realmente tivesse ficado o rosto deformado, num primeiro momento a velha sorria, num segundo ficava puta da vida e me dava umas porradas de leve.

É realmente difícil lidar com os tempos verbais hoje em dia. Mas o que importa, é que terminado minha cerveja, decidi dar um boa caminhada sem rumo pela cidade. Não tinha nenhum bico pra fazer mesmo e também não estava afim de procurar nenhum, a grana ainda ia durar por algum tempo. Coloquei minha roupa e pé na estrada.
Descendo uma rua qualquer, vi que num jardim de casa, duas menininhas descalças brincavam correndo uma atrás da outra, provavelmente pique e pega. Nova recordação, pés descalços na grama. A quanto tempo não fazia isso? Essa recordação também tinha cheiro, tato, música, obviamente visão, só não sei se paladar, acho que foram poucas vezes que meti um tufo de grama na boca.
Aquilo ali entrava como espinhos suaves em nossos pés, se é que isso é possível, era como se em cima houvesse uma camada macia e em baixo algo bem encrespado e duro. O cheiro de grama todo mundo já conhece, mas quero dizer a vocês que nada como o cheiro de grama cortada. Sempre sonhei em fazer um perfume com esse aroma, parecido com aquele menino do livro.
Pisar na grama, ouvir aquele chiado dela sendo esmagada aos poucos e depois os sons dela se reconstituindo das suas pegadas. Quando retomei a consciência, já estava descalço simplesmente caminhando em círculos na frente das meninas. Elas pareciam que iam começar a chorar e provavelmente os berros seriam fortes, clamando por seus pais. Dei o fora dali.
Será tudo isso mera descrição memorialista? A máquina não só está enferrujando como também caindo aos pedaços.

Decidi então passar numa livraria. Adoro comprar livros de bolso. É, realmente é. Ficar girando aquelas prateleiras e de repente o danado aparece. É claro que o fator principal é por eles serem baratos, como free lancer não dá pra ficar comprando sempre aqueles calhamaços cheios de ilustrações. Fato é, que na livraria encontrei uma das mulheres do sentimento, aquele do despertar, que recordei quando acordei.
Ela estava parada no meio da loja, segurava na mão um livrinho de bolso também. Acho que também fica bom aqui. Vestia uma saia vermelha, dessas que parecem estar engomadas, uma blusa justa decotada azul e uma jaqueta de pseudo couro amarelo. O resto da descrição termino depois. Aliás, imaginem que ela também tem cabelo curto e o resto complementem como quiserem.
A maioria das pessoas que estavam ali na loja, olhavam espantados para ela. Logo percebi o porquê. Em voz alta estava lendo o livrinho, não dava para identificar que livro era, mas a questão é que não parecia estar fazendo muito sentido para os presentes ali.
- E ele mordeu fortemente o clitóris dela. Logo toda a cama já estava ensanguentada. Ela ficou horrorizada com aquela atitude, não entendia como que uma pessoa supostamente tão carinhosa como ele, pudera cometer uma atitude como aquela. Parava olhava em volta, parecia buscar o olhar de cada pessoa e depois continuava.
- Sim! Sim! Sim! Deu as duas últimas garfadas no enorme pedaço de bolo de cenoura. Aquele pedaço poderia ser considerado um bolo em si, mas ele sempre teve ciência de que se tratava de um pedaço. Sabia também que era o último bolo de cenoura que comia feito por sua mãe. Durante a primeira garfada a velha acabara de ter um infarto e caiu no chão da cozinha na frente do rapaz. Por causa disso, ele hesitou em dar a segunda garfada, mas sabia que aquilo era necessário e então fez.
Respirou profundamente, lembram-se da aparência das roupas dela, as cores, o que vocês imaginaram? Respirou profundamente e fechou o livrinho e começou a falar mais uma vez:
- Vocês podem estar achando tudo isso muito estranho, uma leitura desconexa, e que vai do horrendo ao ridículo. E justamente devem variar entre tais sentimentos, não sabem se ficam horrorizados ou se dão gargalhadas por acharem tudo isso muito ridículo. Não estão acostumados com algo que rompa com a zona de conforto de vocês. Mesmo numa livraria, suposto lugar de intelectualidade, tudo tem que correr como manda a regra.
Riem, mas nem se quer notam a própria prisão. Enquanto falo, conseguem imaginar algo bem colorido, que de fato soe como absurdo? E qual foi a última vez que um de vocês praticaram o absurdo? Isso é arte meus queridos, a prática do absurdo. Somente ele pode significar liberdade.
Mas compreendo vocês, nem sempre sou assim, também tenho medo, muito medo. Afinal desde criança tomamos pauladas, e a mordida seja do sexo ou do bolo soa pior do que as surras oprimindo as cambalhotas.

Licença poética. Afinal é a personagem que está falando mesmo. O que fazer com o soar ridículo? Tudo já está ficando muito forçado, a máquina está prestes a explodir.

Abriu os olhos, por um segundo ela desejou aplausos, mas sabia que isso não ia acontecer. Eu fui o único que aplaudi, talvez pela consideração que ainda tinha por ela, não por toda aquela baboseira que tinha acabado de ouvir. Minhas palmas soavam secas e ecoavam pela loja, dessa vez era eu o centro das atenções. Percebendo aquilo, dei o fora dali.
- Miguel! Miguel! Espera!
Quando já estava na rua, olhei para trás e percebi que ela corria atrás de mim e gritando. Parei e esperei.
- Ei carinha, diz ai, o que você achou da minha performance?
- Ah foi até legal, pena que parece que o pessoal não gostou.
- Do jeito que que você falou, parece que também não gostou.
- Como assim? Você não viu que fui o único que aplaudiu?
De repente, mais uma vez de repente, tomei consciência que ela estava ali parada na minha frente. E que se tratava também de um corpo parado na minha frente. Logo uma explosão de flashes começou a surgir na minha cabeça. Cenas de sexo com ela, de risadas, de brigas, tudo isso muito banal. Mas o fato é que fiquei ao mesmo tempo excitado e desesperado. Excitado pelas recordações do sexo, desesperado por ter todos os sentidos ativados pelas boas recordações dos momentos de risadas e desesperado por saber que aquilo era impossível de ser recuperado. Qual foi o dia em que tive o sentimento de hoje de manhã com ela?
- Preciso ir.
- Como assim?
- Tchau.
Saí dali, andando com passo apressado, ela me dizendo para esperar, mas nem dei ouvidos e continuei.

Preciso terminar isso aqui. Já estou me alongando muito. É assim que as coisas funcionam hoje em dia, tudo compacto e rápido para ser degustado. Filmes, literatura e o caralho a quatro. Rápido e compacto. Mas não queria terminar em casa, com uma ótima cena de tragédia. Provavelmente irão reclamar que tudo isso já foi escrito.

Eis que olho por uma dessas janelas quadriculadas. Mas tudo está preto, somente por um dos quadradinhos é possível enxergar. Várias pessoas parecem caminhar ali dentro, como se estivessem do outro lado da rua. Não, vejo elas de cima para baixo, são pequenas, e sei também que se trata da janela de uma loja. Afasto, tento olhar de novo, agora aquele quadrinho também ficou escuro.





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