Sabia que tinha alguma coisa de errado. Quando você está casado,
namorando, ou está em um simples rolo, por mais otário que você seja, sempre
consegue sentir minimamente o cheiro de alguma coisa que está sendo
escondida. Um bela dia, ela simplesmente muda o tom de voz, o olhar
nunca fixo e o melhor de tudo, o sexo pra ela sempre parece algo
entediante ou até mesmo que lhe cause nojo. Quando perguntava se
tinha alguma coisa de errado acontecendo, se eu tinha feito algo que a estava chateando, a resposta era sempre a mesma: “Não é nada demais meu bem, na verdade to com muita
coisa pra fazer e meio que sem empolgação pra fazer tudo, deve ser
porque esse semestre tá um saco.”
Com certeza não era só isso, era óbvio que não era,
eu mesmo poderia tar passando por tudo aquilo que ela falou e nem
por isso teria mudado tanto minha personalidade, assim de uma hora
pra outra. Nesses momentos do relacionamento, é realmente onde a
coisa pega ou pode pegar. Digo isso, porque um milhão de coisas começam a passar na sua pobre cabecinha, quando você sabe que ela
está escondendo algo e por mais que você tente exprimir ela, no
fim das contas não sai nenhuma gotinha de suco da verdade. Aí meu
amigo, você começa a pensar cada besteira...
“Porra, será que ela tá me traindo? Mas como assim?
O nosso relacionamento é aberto, não faria sentido nenhum ela me
trair, se ficar ou transar com outro cara, pra mim nem é traição.
Porra, então deve ser algo mais sério, mas o quê? Talvez ela ficou
com alguém que eu odeio, ou sei lá, transou sem camisinha, puta
merda, mas mesmo tudo isso, ela sabe que daria pra conversar comigo.
E se não for nada disso, com certeza não é nada disso. Uma coisa
que eu tenho certeza é que posso confiar nela sobre tudo isso, deve
ser algo bem mais sério, sei lá, mas caralho eu não faço a
mínima ideia do que pode ser, caralho!”
Todas essas dúvidas foram se enraizando no meu estômago,
bem parecido com o momento em que a gente sente ciúmes e aquela merda fica girando na
sua barriga, só que esses sentimentos eram piores ainda, eles não
só giravam, foram criando raízes e aquilo foi se
aprofundando dentro de mim, eram sentimentos tão viscerais que tudo
aquilo parecia não só estar rodopiando dentro de mim, mas sim me
corroendo por dentro. E com certeza, não é muito difícil a mente
humana passar do plano das indagações para o plano das
conspirações. Aos poucos eu também fui me modificando, a minha
vontade de controle sobre ela cresceu de uma maneira assustadora,
tudo isso na busca das respostas de minhas primeiras indagações,
mas que na verdade já estavam quase caindo no plano do
esquecimento, por isso passei a querer investigar as coisas dela,
caixa de e-mail, mensagens no celular, o escambau, mas nunca achava
nada que fosse revelador. Também passei a tratar o seu ceticismo com uma certa agressividade, que nunca se
deu de fato, mas mesmo isso, não fazia ela dar as respostas
que eu buscava, na verdade mesmo com todo o meu controle, com toda a
minha raiva, ela sempre respirava fundo e continuava
cética a tudo, mas fria que um defunto morto já a dois dias.
Nosso relacionamento cada vez mais foi se deteriorando. A única alternativa que eu achava era culpá-la, mesmo olhando nos
olhos dela e tendo a certeza que de fato a culpa não era sua. Mas ela de uma certa maneira
não fugia dessa culpa, não fugia porque parecia que revelar aquilo
que poderia sanar toda a nossa derrocada seria mais doloroso do que
respirar fundo e engolir tudo isso, até mesmo a morte do nosso
amor.
Amor, tá aí uma palavrinha importante em toda essa
história. Se não fosse todo o amor que sinto por ela, já teria
chutado essa porra toda pro ar e seguido em frente. Mas
diferentemente da maioria das pessoas, eu e ela nunca acreditamos
numa concepção de amor romantizada, pintada de cor de rosa, etc e
tals. Esse lance todo que estou contando não foi a primeira barra
pesada pela qual passamos, mas uma das mais e tudo o que passamos levou a
acreditarmos numa concepção de amor muito mais concreta, que exige
suar a camisa no dia a dia pra que tudo isso de certo. Por isso eu
pensava:
“Ai, eu sei que tá foda, mas eu preciso ter
paciência pra dar um jeito em tudo isso. Porra, mas eu não aguento
mais, to agindo dum jeito que não quero, ela também não muda esse
jeito que tá me tirando do sério, mas eu preciso ter calma e
pensar no que fazer”. Paciência com saco cheio só pode dar
numa coisa, pegar a pessoa pelo braço e expor todo tipo de coisa
que tá na sua cabeça, desde as mais abissais merdas até os mais
coerentes e sensatos pensamentos. E foi isso que fiz: um belo dia,
assim como o belo dia em que do nada ela mudou, eu decidi dar um
jeito naquilo tudo.
- Sandra vem aqui. Já tem umas semanas que você
deve tar percebendo que a gente não tá se entendendo, e eu já não
to aguentando mais isso. Você não me olha direito, não conversa
direito comigo, sempre esquiva, mais fria que tudo e você deve ter
percebido também que nesses últimos tempos eu comecei a te tratar
bem mal e é por causa de tudo isso que to falando. Cara, ou você
me fala o que tá acontecendo, ou pra mim já era. Sei lá o que você
fez, se você deu pra outro, pra mim tanto faz, você sempre soube
disso e a gente sempre lidou bem com isso, se você injetou alguma
merda, sei lá, se você chupou a sua mãe, pra mim não importa,
mas se você não contar o que tá acontecendo pra mim, sei lá,
foda-se, não aguento mais isso, sério mesmo.
Isso foi só o
princípio das coisas que eu disse. Nem foi preciso terminar tudo, sendo que, na metade para frente daquele monte de coisa que eu estava
vomitando sobre ela, a pobre coitada já ter desabado a chorar e a
soluçar. Eu estava com tanta raiva, que no fundo, alguma parte de mim estava até achando aquilo bom, se no fim das contas não saísse nada
que prestasse, pelo menos ela estava pagando por tudo isso. Mas não,
lá no meio do choro e dos gritos, ela tinha começado até a
gritar e me solta a seguinte frase, duma maneira bem engasgada:
- EU FUI ESTUPRADA!
Nesse momento, pra mim nunca fez tanto sentido todas
engolidas secas e respiradas fundas que a vi fazendo nesse tempo todo,
juro pra vocês que meu coração congelou, ficando mais frio do que
ela havia sido comigo e quem engoliu bem seco e respirou
profundamente dessa vez fui eu. Enquanto ela continuava a chorar
cada vez mais alto, um profundo silêncio se abateu sobre mim e
quase que mecanicamente eu soltei:
- E quem foi?
Parecia que de propósito ou não, nem tinha me
escutado e simplesmente no mesmo tom e na mesma frequência continuava a chorar, foi quando eu gritei tão quanto ou até mais
alto que o choro dela e perguntava novamente quem tinha feito
aquilo, já bastante enfurecido.
- Eu não quero falar mais disso.
- Como não? Alguém faz uma merda dessa com você e
você quer que eu fique numa boa, sem saber quem foi? Sandra pelo
amor de Deus, me fala quem fez isso, é sério”.
Mais uma vez silêncio, só que dessa vez vindo das
duas partes, então eu tinha entendido que era necessário que os
dois se acalmassem para que fosse possível tecer qualquer tipo de
conversa sobre tudo aquilo. Quando esse momento chegou, antes de
qualquer palavra, como num salto instintivo, a abracei tão
profundamente, beijei e fiz carícias no seu cabelo e começamos a
chorar juntos, mas dessa vez o choro em coro não era mais de
desespero, mas sim por sentirmos que havia ainda um bonito
sentimento entre nós, que mesmo com todo esse turbilhão ainda
existia. Pude sentir o calor do coração dela se aquecer mais uma
vez em contato com o meu peito e ficamos naquele momento onde nossa
respiração, por mais triste que fosse ainda seguia no mesmo
compasso, demonstrando que aquele abraço profundo em que a gente se
encontrava, como em outros momentos, era mais sincero e aconchegante
do que qualquer palavra que poderíamos dizer. Tendo a nossa ligação
se estabelecido mais uma vez, ela me contou como a história
aconteceu.
- Eu tava um dia voltando pra casa de noite, e
lembra aquele vizinho que eu te falei, que eu sempre escuto uns
gritos na casa dele, nesse dia tava tudo silêncio e a rua tava bem
vazia, só o bar lá ainda tava aberto, mas mesmo assim, esse bar nem é
tão perto lá de casa. Quando eu tava passando pela casa dele a
porta da garagem tava aberta e de repente eu só senti um puxão que me jogou pra dentro. Enfim, aí ele fez tudo que você deve imaginar que ele
fez, depois quando aquele porco desgraçado já tava desmaiado eu
juntei minhas coisas e fui embora.
Essas frases como estão
escritas aqui, parecem colocar a coisa toda de uma maneira muito
simplista, mas tenham certeza que não. Não foi fácil pra ela
colocar cada palavra, concluir cada frase, não foi fácil pra mim
querer que ela concluísse aquela história. Ela não disse
detalhes e eu não fiz questão de perguntar; não fiz questão de
perguntar o porque de não ter feito nada depois, não contou pra
polícia, não contou pra mim, não falou pra família. Nada
disso eu perguntei, o abraço substancial em que nos encontrávamos momentos antes, me fez entender tudo que eu precisava entender,
apesar dessa história que eu acabara de ouvir.
Já tinha dito a vocês o salto que a mente humana pode dar
das indagações às conspirações. E quando a raiva é combinada
pela frieza, que foi gerada pelo arrombo causado por toda essa
desgraça mortífera, quais são as consequências em que a mente pode chegar? Quando olhei no seus olhos, quem fez a leitura
dessa vez foi ela, compreendendo muito bem tudo aquilo que eu estava
sentindo e reciprocamente nos seus olhos pude ler a cumplicidade de
que necessitava. Sem barreiras morais, até porque toda a
moralidade possível já tinha se perdido através de várias e
várias profundas respirações.
Mais uma vez ela voltou tarde pra casa, mais uma vez o
silêncio reinava na rua deserta, mais uma vez o portão estava
aberto, mais uma vez foi arrastada pra dentro, por nenhuma
consequência ter sido gerada, ele estava tão tranquilo na certeza que
aquilo poderia ser feito mais uma vez. Foi preciso esperar chegar no momento em que o ato estava prestes a começar, só que
dessa vez ela não estava sozinha. Eis aqui o depoimento dele aos
policiais logo após de ter acordado no hospital:
- Tem uma menina na minha rua que sempre me
provoca sabe, passava todo dia lá na porta de casa sempre com umas
roupas provocantes, me olhava de um jeito, até que um dia eu não
aguentei, você sabe como é, ninguém é de ferro, acho que nem se
eu fosse santo, do jeito que ela fazia comigo dava pra aguentar,
vocês tinham que ver. Quando eu tava quase lá nas vias de fato,
dava pra ver na cara dela que ela tava gostando, eu senti uma
pancada forte na cabeça. Quando eu acordei tava tudo escuro,
provavelmente eu tava vendado e senti que também tava amarrado
numa cama ou algo assim, deitado de bruços - Nesse
momento, o relato policial descrevia que ele começou a chorar,
provavelmente bem fininho, como uma criancinha que perdera seu
melhor brinquedo - Aí eles enfiaram... eles enfiaram...
enfiaram algum tipo de ferro bem quente e cortando na minha bunda...
pelo amor de Deus... isso não se faz a ninguém doutor, fizeram
isso um tempão, tava tocando umas músicas estranha, de doido, até
hoje essas músicas tão na minha cabeça. O que os outros vão
pensar de mim doutor? O quê? Eles arrancaram meu saco doutor,
cortaram doutor. Que que eu vou fazer da vida? Virar bicha? Eles
deviam ser bichas, ela devia ser sapata, só pode, eu era o único
que ela gostava de dar, tenho certeza. Eu vou matar esse povo
desgraçado, doutor, vou matar esses DESGRAÇADOS! EU VOU MATAR! QUE
QUE VAI SER DE MIM? - Ele realmente parecia um porco capado se
debatendo sobre a mesa do hospital. Quando indagado sobre se ouvira
alguma voz, algo que pudesse identificar quem fez aquilo, disse apenas que ouvira profundas respirações.